Filme bastante pessoal de Malle, uma obra surreal de ambientação onírica.
Direção: Louis Malle | Gênero: Fantasia
Ano: 1975 | Nota no IMDB: 6,3/10
ESSE TEXTO CONTÉM ALGUMAS INFORMAÇÕES QUE PODEM SER INTERPRETADAS COMO SPOILERS (apesar de eu ter evitado colocar as partes vitais da trama)
O aclamado Louis Malle tenta fazer, em Lua Negra, uma obra mais pessoal. Gravado em sua própria casa de campo, o filme parece mais uma jornada interna dentro de um sonho. No filme, a estória é contada através de artifícios estéticos das próprias imagens elaboradas com riqueza simbólica.
O filme inicia com Lily (Cathryn Harrison) viajando por uma estada de vazia de alguma região europeia num momento em que o dia está quase nascendo e a escuridão ainda é mais intensa. Há um pequeno animal na estrada, farejando o asfalto. Lily passa com o carro por cima da pequena criatura, dando largada à trama. Logo após, ela testemunha o que parece ser uma guerra entre os sexos; homens matando mulheres e mulheres matando homens.
Após fugir dos horrores da guerra que estoura lá fora, Lily chega com muito esforço até uma casa de campo onde encontra um unicórnio, um rapaz aparentemente mudo que se comunica através do toque de suas mãos, uma garota que cuida das ovelhas, várias crianças que andam nuas próximas a um porco, uma velha que conversa com um rato enorme. O rapaz (Joe Dallesandro) também se chama Lily e sua irmã também carrega o mesmo nome. A sua irmã, Lily (Alexandra Stewart), além de cuidar dos rebanhos, alimenta as crianças e amamenta a velha (Therese Giehse) com leite dos seus seios.
Já é possível notar que o enquadramento é bastante fantasioso. No filme, os animais falam, as plantas gritam e a realidade é uma coisa a se questionar. Tudo obedece a um tipo de lógica do devaneio; personagens acusando verbalmente que outros personagens não existem, mudanças bruscas de conduta nos personagens e falta de explicação narrativa. É um tipo de organização onírica que rege o progresso do filme, lembrando um pouco o filme tcheco Valerie e Sua Semana de Deslumbramentos (1970).
Sendo de tal forma, é compreensível que o filme não vá agradar a todos os públicos. Na realidade, é possível que agrade uma diminuta camada da plateia. O filme pode ser tido como uma obra para sentir mais do que para entender; uma experiência visual, não uma trama envolvente. Para aqueles mais apegados à simbologia, o filme é um convite a perceber símbolos e possíveis sentidos. No entanto, ele acaba sendo bastante pessoal, talvez até demais, dificultando essa tarefa. Em muitos momentos, há a sensação de estar dentro de um processo de imaginação ativa alheio, com outra pessoa empreendendo um diálogo espontâneo com figuras internas da própria psique. Contudo, o filme transparece alguns conteúdos mais acessíveis à universalidade, conteúdos semelhantes aos levantados pelo filme tcheco mencionado no parágrafo anterior.
Para o filme, optou-se por usar como cenário a casa de 200 anos do próprio Malle e seus arredores. A própria existência da casa já foi um passo inicial para o filme, pois o diretor tinha a intenção de filmar algo ali. O autor afirma ter obtido influência em Alice no País das Maravilhas para criar o filme. Para a realização do filme, ele contratou Sven Nykvist, diretor de fotografia e cineasta sueco que trabalhava com o diretor Ingmar Bergman. Como Malle tinha consciência de que seria um filme difícil para o público maior, então chegou a considerar fazer uma versão curta, com cerca de uma hora.
O filme é um pouco difícil de aceitar para aqueles que não estão habituados a esse tipo de cinema ou não tiveram prévias experiências com outros filmes oníricos. Para muitos, poderá soar como excessiva estilização em torno de uma trama inexistente; um delírio de louco cujo valor repousa no próprio conteúdo interno da loucura, não somando nada a quem assiste. Essa seria uma crítica bastante pesada, principalmente por se tratar de um diretor da grandeza de Malle.
Comenta-se que o filme parte da questão da liberação feminina presente nos anos 70, com uma jovem se encontrando perdida em meio a essa guerra entre sexos, descobrindo também aspectos de sua sexualidade e se liberando de alguma forma dentro desse contexto. O filme gerou polêmica pelo fato de a protagonista exibir os seios duas vezes durante o filme, pois a atriz contava com 15 anos apenas.
Apesar de ter uma caracterização próxima à dos sonhos e um desenvolvimento muito pessoal do diretor, Lua Negra é um filme esteticamente muito belo. Um fato interessante é que se optou por não filmar nenhuma cena externa com a luz do sol incidindo diretamente. O movimento das câmeras é sutil e a casa do próprio Malle serve de local perfeito para as filmagens. As cenas escuras crepusculares numa paisagem morta, triste, tem um resultado bastante admirável.
Recomendaria esse filme para pouquíssimas pessoas. Eu mesmo não tive com ele uma grande experiência, mas estou apto admirar suas qualidades e entender o que ele alcança em termos daquilo que ele se propôs a cumprir.
Referências